O jornal israelense Haaretz fez uma crítica devastadora ao líder do país após a eclosão da maior crise de que se tem memória no último sábado:
O desastre que se abateu sobre Israel no feriado de Simchat Torah é de clara responsabilidade de uma pessoa: Benjamin Netanyahu. O primeiro-ministro, que se orgulha de sua vasta experiência política e sabedoria insubstituível em questões de segurança, falhou completamente em identificar os perigos para os quais estava conscientemente conduzindo Israel ao estabelecer um governo de anexação e desapropriação, ao nomear Bezalel Smotrich e Itamar Ben-Gvir para cargos importantes e ao adotar uma política externa que ignorava abertamente a existência e os direitos dos palestinos.
Os aliados de Netanyahu no governo, Bezalel Smotrich e Itamar Ben-Gvir, são ambos políticos de extrema direita de assentamentos em terras palestinas ocupadas. No início deste ano, Smotrich afirmou que o povo palestino “não existe”, enquanto o Departamento de Estado dos EUA repreendeu Ben-Gvir por seus “comentários racistas e destrutivos” sobre o status supostamente inferior dos palestinos na Cisjordânia.
O editorial do Haaretz acusou o primeiro-ministro mais antigo de Israel de buscar deliberadamente um confronto violento com os palestinos:
No passado, Netanyahu se apresentava como um líder cauteloso que evitava guerras e múltiplas baixas do lado de Israel. Depois de sua vitória na última eleição, ele substituiu essa cautela pela política de um “governo totalmente de direita”, com medidas evidentes tomadas para anexar a Cisjordânia, para realizar a limpeza étnica em partes da Área C definida em Oslo, incluindo as Colinas de Hebron e o Vale do Jordão. Isso também incluiu uma expansão massiva dos assentamentos e o reforço da presença judaica no Monte do Templo, próximo à Mesquita de Al-Aqsa, além de alardear um acordo de paz iminente com os sauditas, no qual os palestinos não receberam nada, com conversas abertas sobre uma “segunda Nakba” em sua coalizão de governo.
O Haaretz poderia ter incluído em sua denúncia os governos ocidentais que incentivaram Netanyahu e seus aliados a todo momento. Não importa quantas vezes os principais membros da classe política de Israel insistiram que jamais permitiriam a criação de um Estado palestino, os Estados Unidos e os países europeus mais poderosos continuaram apoiando Israel incondicionalmente, enquanto fingiam que havia algum tipo de processo de paz significativo.
Ao mesmo tempo, os líderes americanos e europeus fizeram tudo o que estava ao seu alcance para bloquear ou até mesmo criminalizar formas não violentas de pressão sobre Israel, ao mesmo tempo em que diziam aos palestinos que eles não deveriam, em hipótese alguma, usar métodos violentos contra a ocupação de suas terras. Agora, os mesmos líderes deram a Netanyahu um cheque em branco para iniciar uma guerra contra Gaza, quando eles sabem, por experiências passadas, que isso resultará em violência massiva e letal contra civis.
Queimando pontes
Lembremos como os aliados ocidentais de Israel responderam a várias formas de ação não violenta dos palestinos e de seus apoiadores nos últimos anos. Em 2021, a Autoridade Palestina (AP) solicitou ao Tribunal Penal Internacional (TPI) que investigasse supostos crimes de guerra israelenses nos territórios ocupados, incluindo o ataque a Gaza em 2014. O governo dos EUA condenou imediatamente a medida, e o secretário de Estado de Joe Biden, Antony Blinken, emitiu a seguinte declaração:
Os Estados Unidos acreditam que um futuro pacífico, seguro e mais próspero para o povo do Oriente Médio depende da construção de pontes e da criação de novos caminhos para o diálogo e o intercâmbio, e não de ações judiciais unilaterais que exacerbam as tensões e prejudicam os esforços para promover uma solução negociada de dois Estados.
Continuaremos a defender nosso forte compromisso com Israel e sua segurança, inclusive nos opondo a ações que buscam atingir Israel injustamente.
Essa declaração foi um insulto à inteligência daqueles que tiveram que lê-la. Blinken sabe perfeitamente bem que não há “esforços para promover uma solução negociada de dois Estados” que possa ser “prejudicada” por uma investigação do TPI. Na prática, o governo Biden quer que Israel seja protegido de qualquer responsabilidade legal por suas ações, daqui até o fim dos tempos.
Após a formação do novo governo de Netanyahu com seus parceiros Smotrich e Ben-Gvir, Blinken disse em uma conferência da J Street em dezembro de 2022 que o apoio dos EUA a Israel era “sacrossanto”. Como Peter Beinart observou, o discurso de Blinken deu a Netanyahu sinal verde para fazer o que quisesse nos territórios ocupados:
Blinken nem sequer se comprometeu a desfazer as humilhações gratuitas impostas aos palestinos por Donald Trump. Ele não prometeu reabrir a missão da OLP em Washington ou a embaixada dos EUA em Jerusalém Oriental, que foi estabelecida em 1844 antes de ser fechada em 2019 pelo Secretário de Estado Mike Pompeo, um homem que uma vez chamou Barack Obama de simpatizante do ISIS. Blinken não disse que os assentamentos violam o direito internacional – outra posição de longa data dos EUA que Trump derrubou e que o governo Biden não conseguiu restaurar.
No mesmo mês do discurso de Blinken no J Street, houve outra tentativa de responsabilizar Israel por meio da estrutura jurídica internacional. A Assembleia Geral da ONU solicitou à Corte Internacional de Justiça (CIJ) um parecer consultivo sobre “as políticas e práticas de Israel no território palestino ocupado”. Os Estados Unidos votaram contra o encaminhamento, juntamente com países europeus como a Grã-Bretanha e a Alemanha. Em julho deste ano, o governo britânico enviou um documento jurídico de 43 páginas à CIJ pedindo que o caso não fosse ouvido.
Em entrevista ao The Guardian, uma fonte palestina de alto escalão descreveu o documento como “um endosso completo dos argumentos israelenses”. Antony Blinken já havia se oposto ao caso do TPI com o argumento de que os palestinos “não se qualificam como um estado soberano”. Agora, seus aliados britânicos viraram esse argumento de cabeça para baixo, apresentando a ocupação como uma “disputa bilateral” entre Estados. O único princípio consistente em ação era a exigência de que Israel deveria ter total impunidade.
Repressão
Os apoiadores de Israel na Europa e na América do Norte são igualmente hostis à ideia de pressão aplicada por meio da sociedade civil. O movimento de Boicote, Desinvestimento e Sanções (BDS) é uma tentativa de compensar a recusa dos governos em impor quaisquer sanções a Israel por sua opressão aos palestinos. Entretanto, houve várias tentativas de proibir esse movimento, da França aos Estados Unidos.
A resposta hostil e autoritária às iniciativas legais e da sociedade civil dos aliados ocidentais de Israel nos mostra o que eles realmente querem dos palestinos.
Mais recentemente, o parlamento do Reino Unido aprovou um projeto de lei que proíbe que órgãos públicos como os conselhos locais, de tomar decisões sobre compras ou investimentos com base na “desaprovação política ou moral da conduta de um estado estrangeiro”. Em teoria, isso obrigaria os conselhos a fazer negócios com qualquer estado do mundo, não apenas com Israel, independentemente da “desaprovação política ou moral”. Mas o projeto de lei permite que o governo britânico concedesse uma isenção dessa regra em quase todos os casos, com as exceções de “(a) Israel, (b) os Territórios Palestinos Ocupados ou (c) as Colinas de Golã Ocupadas”.
Em outras palavras, as autoridades britânicas não fazem distinção na lei entre Israel como era antes da guerra de 1967 e os territórios ocupados além da chamada Linha Verde. Essa é certamente a maneira como os políticos israelenses veem as coisas: eles deixaram claro repetidas vezes que consideram os assentamentos da Cisjordânia como parte integrante do Estado israelense e não têm intenção de desmantelá-los em nenhum momento no futuro.
A resposta hostil e autoritária às iniciativas legais e da sociedade civil dos aliados ocidentais de Israel nos mostra o que eles realmente querem dos palestinos. Eles não querem apenas que o movimento nacional palestino se abstenha de usar a violência contra civis israelenses, ou mesmo que se abstenha de usar a violência. Eles querem que o movimento renuncie a qualquer forma de ação que possa comprometer sua capacidade de apoiar a ocupação e toda a violência necessária para impô-la.
Após incentivar Netanyahu no caminho para o desastre, políticos em Washington, Londres e outras capitais ocidentais estão agora apoiando seu ataque a Gaza em nome do “direito de Israel de se defender”, que os governos israelenses sempre interpretaram como o direito de usar a violência contra civis em grande escala. O ataque já matou centenas de palestinos e matará centenas ou até milhares mais se for permitido continuar. Interromper esse ataque é a principal prioridade hoje.
Sobre os autores
é editor adjunto da New Left Review. Ele é autor de "One Man’s Terrorist: A Political History of the IRA".